segunda-feira, 4 de maio de 2015

Entre mentes





Ao abrir os olhos, aquilo que parecia apenas sonho se tornou realidade. Era o primeiro ser humano a ter sua mente transplantada para um corpo  artificial. Havia passado anos estudando a arquitetura mental e como conseguiria replica-lá em uma máquina através de um download de informações. Todas as lembranças guardadas, as emoções vividas, seus desejos mais íntimos, tudo estava lá no seu novo corpo, corpo este projetado especialmente pra ele. Estava cansado de ser baixinho, raquítico, pálido, calvo, um tanto corcunda. Seu forte de fato era aquilo que outrora ocupava sua antiga caixa craniana. Seu novo corpo era alto, atlético, negro como azeviche, robusto e depois de tantos anos perdendo cabelo, agora ostentava um belo black power. Se sentia poderoso, podia fazer tudo que quisesse. Antigamente era desacreditado, ninguém o levava muito a sério ou lhe dava atenção, agora após seu sucesso, as pessoas lhe cumprimentavam, convidavam para jantares da gala, programas de televisão, etc e um dos tópicos que sempre o questionavam era se ele, era ele mesmo. Ninguém se preocupava com os métodos, apenas com resultado final. Foram feitos testes, uma longa conversa com sua mãe, seu pai, alguns pouco amigos próximos, incluindo sua assistente, que passava a maior parte do tempo com ele no laboratório. Certa madrugada, voltando de uma grande festa, onde havia bebido e comido muito bem, chegou em seu laboratório e se sentou em sua cadeira de rodinhas em frente ao computador. Na festa esteve em companhia de uma bela modelo e pegou o telefone de mais três, tirava os papéis do bolso e examinava-os a meia luz. Era como se o mundo finalmente se desse conta de sua existência. Então era assim que as pessoas normais viviam? Era isso que havia perdido por se dedicar tanto a sua pesquisa? Bom, iria aproveitar ao máximo. Olhando ao redor, todos aqueles anos de trabalho enfurnado ali tinham valido a pena. Em sua mesa um punhado de papéis estavam espalhados, algumas correspondências, convites, artigos seus publicados, etc. No meio da bagunça um porta retrato estava tombado, ao levanta-lo viu uma foto antiga de quando ele e sua assistente ainda eram bem jovens. Ver ali sua antiga imagem era repugnante. Aqueles óculos grossos, um sorriso com dentes tortos... agora cada vez que sorria os flash da câmeras captavam a brancura de um sorriso perfeito. Parou para notar sua assistente, fazia um tempo que não falava com ela, uma semana? Duas? Não tinha certeza. Ela havia começado a se comportar de maneira estranha desde que conseguiu trocar de corpo, recusava seus convites, pouco se falavam agora que tinha vários compromissos. Ouviu o barulho da chave na porta. Ela adentrou o aposento.

- Olá, Sara.

- Ai que susto! Não esperava te encontrar aqui a essa hora Ben.

- Pois é, eu vim direto da cobertura do Othon, você devia aceitar meus convites de vez em quando.

- Não gosto de me misturar com essas pessoas da alta sociedade e como eu disse um tempo atrás, hoje já tinha compromisso.

- Ah, deixe de bobeira, o que poderia ser mais importante do que se divertir, comer bem, estar envolvido com pessoas interessantes?

- Aniversário da minha mãe.

- Oh, bom eu me esqueci, você poderia ter me lembrado...

- Eu tentei mas você estava muito ocupado - Sara se virou e pegou uma caixa ao lado da porta.

- O que é isso tudo?

- Minhas coisas, estou indo embora.

- Mas como assim? Sem mais nem menos? Vindo na calada da noite, não ia me avisar? Se despedir?

- Bom da próxima vez que nos encontrarmos na rua você poderia tentar prestar mais atenção e não achar que sou apenas mais uma fã querendo seu autógrafo.

- Eu não lembr... quando? Me desculpe, me desculpe... minha vida está muito agitada, eu.. eu não te reconheci...

- Eu também não te reconheço mais.

- Aaah essa história de novo?! Já não tem todas as provas de que eu, sou eu? Tudo ocorreu perfeitamente na transferência! Você me ajudou, não acredita ainda?

- Muito pelo contrário Ben, tenho certeza que tudo funcionou corretamente, essa ai é sua mente, sem dúvidas, mas não se engane, você não é mais o mesmo - virou e saiu batendo a porta a suas costas.

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